7.11.22

NATAL - Miguel Torga

 



Ao longo das páginas dos XVI volumes do Diário (1941-1993) tem Miguel Torga (1907-1995) espalhado um Cancioneiro de Natal. 

Apresentam-se 4 poemas

 

Loa 

É nesta mesma lareira,

E aquecido ao mesmo lume,

Que confesso a minha inveja

De mortal

Sem remissão

Por esse dom natural,

Ou divina condição,

De renascer cada ano,

Nu, inocente e humano

Como a fé te imaginou,

Menino Jesus igual

Ao do Natal

Que passou.

 

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1969.

 

Natal 

Todos os anos, nesta data exacta,

Momentos antes

De fechar o cartório

De poeta

— Um registo civil ultra-real —,

O mago desse arquivo de presságios

Regista de antemão o mesmo nome

No seu livro de assentos:

— Jesus… — repete com melancolia,

A consumar a morte prematura

Do nascituro,

E a lamentar que a mãe, Virgem Maria,

Humana criatura,

Continue a ter filhos no futuro

Condenados à mesma desventura.

 

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1973.

 

 Natal 

Soa a palavra nos sinos,

E que tropel nos sentidos,

Que vendaval de emoções!

Natal de quantos meninos

Em nudez foram paridos

Num presépio de ilusões.

 

Natal da fraternidade

Solenemente jurada

Num contraponto em surdina.

A imagem da humanidade

Terrenamente nevada

Dum halo de luz divina.

 

Natal do que prometeu,

Só bonito na lembrança.

Natal que aos poucos morreu

No coração da criança,

Porque a vida aconteceu

Sem nenhuma semelhança.

 

Coimbra, Natal de 1974.

 

 Natal

 Ninguém o viu nascer.

Mas todos acreditam

Que nasceu.

É um menino e é Deus.

Na Páscoa vai morrer, já homem,

Porque entretanto cresceu

E recebeu

A missão singular

De carregar a cruz da nossa redenção.

Agora, nos cueiros da imaginação,

Sorri apenas

A quem vem,

Enquanto a Mãe,

Também

Imaginada,

Com ele ao colo,

Se enternece

E enternece

Os corações,

Cúmplice do milagre, que acontece

Todos os anos e em todas as nações.

 

Coimbra, 25 de Dezembro de 1983.

 

 Natal 

Menino Jesus feliz

Que não cresceste

Nestes oitenta anos!

Que não tiveste

Os desenganos

Que eu tive

De ser homem,

E continuas criança

Nos meus versos

De saudade

Do presépio

Em que também nasci,

E onde me vejo sempre igual a ti.

 Coimbra, 24 de Dezembro de 1988.

  Poemas transcritos de Miguel Torga, Poesia Completa, 2 volumes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007.

 

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